Literatura e Inovação: “O dia de um jornalista americano em 2889”. Resenha do ensaio de Júlio Verne.
Fábio Lucas[1]
1 Introdução
É conhecida a contribuição da literatura de ficção científica no sentido mergulhar na profundeza do (des)conhecimento humano. Ao levar o leitor para a agudeza da inventividade, traz para ele a possibilidade de refletir sobre o limite entre a ética e o desenvolvimento da humanidade.
Júlio Verne nasceu em 09 de fevereiro de 1828 em Nantes, na França. Formou-se em Direito em Paris, para satisfazer a vontade do pai. Mas em Paris se traçou sua vida literária, sendo considerado o pai da literatura ficção científica.
A obra resenhada é uma das últimas de Júlio Verne. A desconhecida narrativa de um dia de um jornalista futurista a mil anos à frente de 1889 está publicada em português no livro “O Eterno Adão e o dia de jornalista americano em 2889”, pela Hemus Editora.
Embora a obra não tenha relevância literária comparativamente a obras mais famosas como “Viagem ao Centro da Terra”, “Vinte mil Léguas Submarinas”, “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, dentre outras, contém diversas sementes de inovações que se realizaram no Século XXI, como o Ifood, o Podcast, e as ferramentas de reunião on line como GloogeMeets, MS Teams e Zoom, com as quais o teletrabalho foi massivamente utilizado durante a pandemia do Covid-19 de 2020 a 2022.
Nas minhas pesquisas sobre a percepção de erros cognitivos em reuniões virtuais, como tinha buscado minha base teórica na teoria da ação social de Max Weber, não conseguia unir meu referencial teórico com a pesquisa empírica, por uma simples razão: Max Weber não conheceu a internet, não teve contato com smartphones, muito menos fez reunião via plataformas como o Zoom.
Motivado por isso, um professor me aconselhou a ler “Vinte Mil Léguas Submarinas”, porque o Nautilus tinha bastante tecnologia embarcada e seria contemporânea de Weber, o que, para fins de uma dissertação ensaística, poderia me ajudar. Após ler o livro, não verifiquei nenhuma tecnologia que permitisse um diálogo em teletrabalho com Weber e o Submarino. Mas continuei a busca por uma ideia de aparelho que permitisse o teletrabalho e encontrei “O dia de um jornalista americano em 2889”.
Assim, nesse artigo, será feita a resenha de um conto de Júlio Verne: “La Journée d’un Journaliste Américain en 2889”, numa abordagem interdisciplinar entre literatura, direito e administração.
2 O dia de um jornalista americano em 2889.
Inicia a narrativa com uma reflexão de como os homens do Século XXIX vivem de forma agitada sem observar que os frutos que usufruem em 2889 decorrem do esforço das gerações passadas.
Talvez como em nenhuma obra, Júlio Verne apresenta a forma de como pode ele próprio criar história preditivas a partir das coisas já existentes, seguindo ou desdobrando as coisas atuais em possível criações delas decorrentes:
“Coisa estranha! Essas surpreendentes transformações baseiam-se em princípios perfeitamente conhecidos por nossos antepassados, que deles não tiravam, por assim dizer, nenhum proveito. Com efeito, o calor, o vapor, a eletricidade são tão velhos quanto o homem. No final do século XIX os cientistas já não afirmavam que a única diferença entre as forças físicas e químicas consistia no modo de vibração próprio de cada uma das partículas etéricas?” (Verne, s.d., p. 80)
Nota-se assim que Verne é um autor encaixado na perspectiva da lei positivista do progresso, tão comum ao seu século, numa postura de conhecimento voltado ao domínio da natureza pelo homem (Machado Neto, 1974). Essa perspectiva do racionalismo instrumental vem se provando como não ser capaz de promover a emancipação do ser humano (Vizeu, 2005; Castaño, 2021).
Voltando à obra resenhada… Francis Benett, tataraneto de Gordon Benett, fundador do New York Herald, administra um império da comunicação pelo mundo. A lucratividade do jornal é extraordinária de maneira que Francis Benett se movimenta na sociedade internacional como um representante diplomático que traça o destino da Europa e da América. Aqui também se denota o etnocentrismo enraizado da época de Verne.
Mas, no imaginário julioverniano, Nova Iorque ficou ultrapassada e assim Francis muda a sede de seu jornal para Centrópolis. Em sua costumeira supervisão diária dos trabalhos do jornal, começa a descrição da nova forma de transmissão de informação. Com a utilização de milhares de aparelhos telefônicos, os jornalistas entregam as notícias de maneira telemática:
“Muito extensa, esta sala encontra-se sob uma ampla cúpula translúcida. Num canto, existem vários aparelhos telefônicos através dos quais os cem literatos do Earth Herald narram cem capítulos de uma centena de romances a um público fervoroso.”(Verne, s.d., p. 84).
Mas a transmissão das telenovelas não é tudo o que o Earth Herald produz diariamente:
“Uma vez dada esta pequena aula, Francis Benett continua a sua inspeção e entra na sala de reportagem. Os seus mil e quinhentos repórteres, colocados diante de um número equivalente de telefones, comunicavam aos assinantes as notícias recebidas durante a noite dos quatro cantos do mundo.” (Verne, s.d., p. 85).
E a tecnologia imaginária continua nesse que seria a primeira descrição de uma conversa através do jornal, uma espécie de Podcast que Verne imaginou no distante ano de 1889:
“Além do seu telefone, cada repórter tem diante de si uma série de comutadores, que permitem estabelecer comunicações com esta ou aquela linha telefônica. Os assinantes dispõem, portanto, não apenas de uma narração, mas também de uma visão dos acontecimentos.” (Verne, s.d., p. 85).
Eu penso que seria uma espécie moderna de Podcast, mas também pode ser interpretado com a semente não germinada da própria Internet quando Verne propõe que produtores de informação as transmitam por linha para uma infinidade de pessoas, as quais podem ter uma visão geral dos acontecimentos.
Do ponto de vista das relações de trabalho, a forma como o autor imagina a contratação de um sem-número de jornalistas, que passam horas a transmitir informações, ou de escritores, que leem romances para os clientes do Heart Herald, sinaliza o modelo capitalista de precarização do trabalho, num fenômeno hoje conhecido como uberização do trabalho. Essa perspectiva da obra, que prenuncia tantas inovações tecnológicas, pode refletir o momento de exploração que se repete na atualidade (Ferreira, 2000).
Mas as coisas não param por aqui. O dia chega ao meio-dia e na hora do almoço o Sr. Benett escolhe o que vai comer e a comida vem até a mesa dos melhores restaurantes através de uma rede de tubos pneumáticos, do restaurante até a mesa. Assim, segundo Verne o Sr. Benett seria:
“Como todas as pessoas abastadas da nossa época, Francis Benett, que renunciou à cozinha caseira, é um dos filiados da grande Sociedade de alimentação a domicílio. Esta sociedade distribui pratos de mil espécies através de uma rede de tubos pneumáticos.” (Verne, s.d., p. 94).
Bem, isso hoje em dia se chama de Ifood, Uber Eats ou coisa que o valha. Ou talvez algo maior que ainda será desenvolvido…
Mas aqui encontramos a tecnologia ficcional de Verne durante nossa pesquisa de campo sobre o teletrabalho: o fonotelefoto, uma mesa com um grande espelho à frente em que os interlocutores em continentes diferentes se “encontravam” virtualmente, a previsão das reuniões on line, quase 100 anos ou mais antes de que existissem, pelo menos em nossas casas:
“[…] e, à sua frente, arredonda-se o espelho de um fonotelefoto, no qual surge a sala de jantar do seu palácio de Paris. Apesar das diferenças de horário, Mr. E Mrs. Benett combinaram almoçar ao mesmo tempo. Nada tão encantador como estar assim, face a face, não obstante a distância, vendo e falando através de aparelhos fonotelefóticos.” (Verne, s.d., p. 94).
A Sra. Benett saiu para fazer compras em Paris e chegou atrasada em casa e não compareceu ao meeting. Porém, em seguida, ela comparece à frente do espelho eletrônico:
“Portanto, Francis Benett almoçou sozinho, não sem um certo desconforto. Ele estava acabando de tomar o seu café, quando Mrs. Benett, voltando à casa, surgiu no espelho do telefoto.
– De onde é que você vem, minha querida Edith?
– Ora! – respondeu Mrs. Benett – Você já terminou? Eu estou atrasada! De onde eu venho? Fui ao meu modista, claro! Este ano, temos vários chapéus deslumbrantes! Aliás, não se trata mais de chapéus… são zimbórios, cúpulas! Perdi um pouco a noção do tempo!
– Um pouco, minha querida, mas já acabei de almoçar…
– Bom, vá, meu amigo… vá às suas ocupações – respondeu Mrs. Benett. – Ainda preciso ir ao meus costureiro-modelador.” (Verne, s.d., p. 95).
O fonotelefoto ainda no Século XIX prenunciou as interações modernas à distância, e podem ser o elo entre a ciência da administração e os autores da época de forma ensaísticas debater questões teóricas cujos marcos se encontram nos autores clássicos como Marx, Weber, Durkheim, para falar apenas da sociologia.
Assim, embora os estudos sobre os encontros virtuais mostrem diferenças um pouco óbvias entre interações virtuais e interações face a face (Lima & Mendes, 2023), a maneira como Verne representa o encontro do casal Benett antecipa que muitas fronteiras poderiam vir a ser superadas com as conexões à distância.
Considerações finais
Neste artigo nos propusemos a resenhar a obra “O dia de um jornalista americano em 2889”. Aobranão representa literariamente a grandeza dos tempos românticos de Júlio Verne, mas com certeza é a que condensa a maior concentração de ideias de inovações em menor espaço de linhas escritas do portentoso ficcionistas.
Nesta resenha, ilustramos o artigo com algumas similitudes entre criações fictício-literárias de Verne com aplicações atuais como comidas solicitadas desde casa, comunicação via podcast, e a presença de tecnologia imaginária no século XIX que permitiria o teletrabalho.
Há diversas outras possibilidades no pequeno opúsculo, como ideias em relação à geração e armazenamento de eletricidade e seu uso para movimentar veículos de transporte aéreo, dentre outros artefatos, cuja sutileza de Verne faz deixar a descoberto um universo de fantasias que o trabalho e engenho humano pode trazer para a realidade cotidiana.
Referências
Castaño, Pedro Alejandro Jurado. (2021). Jürgen Habermas. Una reconstrucción filosófica y social del Estado de derecho y la esfera pública. Nuevo Derecho, 17(29).
Ferreira, José Maria Carvalho. (2000). Novas Tecnologias e Organização do Trabalho. Organizações e Sociedade, 7(19).
Lima, Fábio Lucas de Albuquerque & Mendes, Viviane Alfradique Figueiredo. (2023). Interacciones Sociales en el teletrabajo obligatorio: Da la racionalidad instrumental a la teoria de la acción comunicativa en el contexto laboral. Revista Chilena de Derecho del Trabajo Y De la Seguridad Social, 14(28).
Machado Neto, Luiz Antônio. (1974). Sociologia Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Saraiva.
Verne, Júlio. [s.d.]O eterno adão e O dia de um jornalista americano em 2889. São Paulo: Hemus Editora.
Vizeu, Fábio. (2005). Ação comunicativa e estudos organizacionais. Revista de Administração de Empresas, 45(4).
[1] Esse artigo foi recentemente publicado na Revista Lusófona de Estudos Culturais e Comunicacionais, Volume 7, n. 2, pp. 78-81. Disponível em: https://revistas.ponteditora.org/index.php/naus/article/view/893